terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Pesquisa e ação educativa com os movimentos sociais no campo no Brasil

Pesquisa e ação educativa com os movimentos sociais no campo no Brasil
(artigo publicado na revista Nº16 Investigação e debate- Serviço Social)

Ilse Scherer-Warren*

Resumo: Com o presente trabalho pretende-se entrar no debate acerca da relação entre a produção de processos cognitivos e práticas educativas para e com os movimentos sociais no campo no Brasil contemporâneo. Inicia-se com algumas considerações sobre o estado da arte da pesquisa sobre essas temáticas, desenvolvendo-se a seguir um referencial de pesquisa que vise compreender as conexões entre conhecer e fazer no campo das ações coletivas, para concluir com as possibilidades de um aprendizado direcionado a construção de um sujeito-ator da transformação social.


Abstract: The present paper aims to debate the relationship between the production of cognitive processes and educational praxis toward, and with, rural social movements in contemporary Brazil. It begins with some considerations about the state of the art of research on those themes. Subsequently, it develops background research for the understanding of the connections between what is to be discovered and what is to be done in the field of collective actions. It concludes by discussing the possibilities of a learning process directed to the construction of a subject-actor of social transformation


Nos anos recentes, os estudos e pesquisa sobre os movimentos sociais no campo, vêm assumindo uma proporção considerável da pesquisa em ciências humanas ou sociais. Isso se deve, em grande medida, pela vitalidade das ações coletivas no campo, especialmente no Brasil, que passaram a ter maior visibilidade na arena política do que a maioria dos movimentos de outra natureza. A título de ilustração, trago alguns dados:
No X Congresso de Sociologia Rural, o qual foi realizado no Rio de Janeiro, em 2000, dos 1057 trabalhos apresentados, 126 (12%) foi classificado no tema “Movimentos sociais, assentamentos e reforma agrária”, o que é bem relevante tendo em vista que o congresso abrangia a diversidade de temas da pesquisa sobre o rural, em escala mundial. Além disso, a temática freqüentemente aparece em temas fronteiriços como em “Democracia local e políticas públicas”, com 155 “papers” (15%), assim os dois temas acabaram perfazendo 27% das apresentações. (Lepri, 2005, p. 30).
No IV Congresso da Associação Latino-americana de Sociologia Rural, ocorrido em Porto Alegre, em 2002, dos 814 trabalhos apresentados, 143 (18%) era no tema “Movimentos sociais, assentamentos e reforma agrária” e 116 (14%) em tema correlato “Democracia local e políticas públicas”, somando 32% do conjunto dos trabalhos, o que é muito expressivo (Ibid, p. 32).
A práxis pedagógica desses movimentos tem sido também um objeto privilegiado dos estudos e pesquisas da atualidade. Para trazer um exemplo da produção científica apenas no Brasil, temos um levantamento da ANPED, sobre teses e dissertações na área de Educação Rural, onde se pode observar que 21,5% dessas, produzidas entre 1981-1998, recaiam no tema “Educação popular e movimentos sociais no campo” (cf. Damasceno & Beserra, 2004).
Maria Antônia de Souza (2000) resgata a contribuição de vários autores - Grzybowski, Gohn, Caldart e Fernandes - os quais destacam que “os movimentos sociais possuem um caráter educativo, oriundo da participação política, dos processos de interação, das negociações com representantes políticos, das relações com os mediadores, enfim, o Movimento como espaço de socialização política”. A autora acrescenta ainda que, segundo Mançano Fernandes, esse espaço de socialização política é composto pelos espaços comunicativo, interativo e de luta e resistência, sendo assim definidos:

“O espaço comunicativo como lugar onde as pessoas se conhecem, constroem conhecimento, debatem temas do cotidiano, relembram suas trajetórias, enfim, é o espaço da leitura e re-leitura da realidade vivenciada. O espaço interativo pressupõe um conhecimento crítico da realidade, o qual foi desenvolvido no espaço comunicativo. O espaço de luta e resistência, de acordo com Fernandes, "é a manifestação pública dos sujeitos e de seus objetivos. É, efetivamente, o espaço de luta" (Ibid., p.237).”

Vendramini (2000, p. 215-6)), numa pesquisa realizada em três assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Santa Catarina, através da pergunta “onde mais se aprende”, chegou a um resultado, que sistematizamos nas seguintes categorias:

Espaços de aprendizagem – assentamentos MST/SC
Movimento/vivência na luta
38 %
Casa/família
24
Escola
17
Igreja
10
Leituras/palestras
10
Fonte: Vendramini, 2000

Subjacente a essa visão sobre aprendizado, está uma idéia de que educação não se refere apenas a conhecimento geral, ou conhecimento técnico, mas também a conhecimento para o exercício da cidadania e para a convivência com a diversidade cultural e o reconhecimento do “outro” enquanto sujeito de seu destino pessoal e coletivo. Essa preocupação está bem explicitada nas palavras de uma militante do MST, Maria Gorete Sousa (Revista Novae):
“Na escola pública não existe preocupação com as diferenças, com a educação dos povos indígenas, dos povos do campo, dos quilombolas. Hoje, existe uma articulação nacional envolvendo várias organizações do campo, entre elas o MST, para discutir essa educação diferenciada. Diferenciada não quer dizer técnica, é preciso frisar isso. Muitos pensam que a educação para os pobres deve ser profissionalizante, não a do conhecimento geral. Queremos não só o conhecimento geral, como o processo completo de conhecimento”.
Roseli Caldart (2004) aponta algumas dimensões de um processo pedagógico continuado, em movimento, fruto da vivência nos assentamentos dos sem-terra: ética comunitária; solidariedade com os outros e com o coletivo; consciência sobre os direitos de cidadania (o indivíduo ter documentos; participação política, etc.); democracia de base e respeito às diferenças (étnicas, de gênero, de religião, regionais, etc.,); compreensão de que faz parte da história e de que a vida é um movimento (p. 178-186).
Os movimentos sociais no campo, dentre esses o caso emblemático do MST, mas também os movimentos contra as barragens, da economia solidária, quilombolas, seringueiros, indígenas, ribeirinhos e muitos outros, são laboratórios de vivência, e que nos permitem pensar sobre as necessidades pedagógicas para uma educação no campo, na direção da construção de escolas do sujeito (cf. Touraine, 1997), orientando-se para a criação de um sujeito livre, para uma comunicação intercultural e para uma gestão democrática da sociedade e das mudanças, princípios esses que são assim entendidos pelo autor:
“El nino que llega a la escuela no es uma tabla rasa sobre la cual el educador va a inscribir conocimientos, sentimientos, valores, Em cada momento de su vida, el nino tiene uma historia personal y colectiva siempre dotada de rasgos particulares...”.
“Una educación centrada em la cultura y los valores de la sociedad que educa es sucedida por outra que atribuye uma importancia central a la diversidad (histórica y cultural) y el reconocimiento del Otro...”.
“Este nuevo modelo parte de la observación de las desigualdades de hecho y trata de corregirlas activamente... Atribuye a la escuela um papel activo de democratización al tomar em cuenta las condiciones particulares en que los diferentes niños se ven confrontados a los mismos instrumentos y los mismos problemas.” (Touraine, op. cit., pp. 277-8).
Para se introduzir práticas pedagógicas adequadas a essas realidades, deve-se também possuir um conhecimento razoável acerca desses cenários, e é aí que a pesquisa social poderá trazer alguma contribuição. Esse cenário de mudança e em constante movimento, requer abordagens multidimensionais da realidade.
Contribuições para uma abordagem multidimensional[1]
Para se compreender os movimentos sociais hoje, deve-se observar como os indivíduos tornam-se sujeitos de seus destinos pessoais e como de sujeitos se transformam em atores políticos por meio de suas conexões em redes. Deve-se, também, buscar entender como estes atores e respectivos movimentos são formas de resistência e de proposições em relação a:

- códigos culturais opressores (cf. Touraine, 1997), que para o caso dos movimentos sociais no campo referem-se especialmente ao patriarcalismo, ao paternalismo, ao clientelismo e aos preconceitos classistas, étnicos, regionais e de gênero;
- códigos informacionais que regem suas vidas (cf. Castells, 1997), que diz respeito à ideologia que predomina na grande mídia e nas falsas ideologias da democracia racial, da homogeneidade nacional, etc.;
- incertezas do cotidiano (cf. Melucci, 1996), decorrente das condições de exclusão social, pobreza, precariedade das condições de vida, etc.

Para tanto, propõe-se uma abordagem que considera a relação entre sujeitos e atores coletivos em sua transformação em movimentos sociais, a partir de uma tripla dimensão das redes na sociedade contemporânea: social, espacial e temporal.
As redes sociais do cotidiano, bem como as redes de movimentos sociais[2], podem contemplar uma relação dialógica entre o tradicional e o moderno, entre o mais local e o mais global, e entre o individual e o coletivo. Para a compreensão deste intrincado cenário das redes, é que três dimensões de análise das redes devem ser consideradas: o tempo social; o espaço e território; e as formas de sociabilidade, conforme segue.

Temporalidade e historicidade

Os movimentos sociais podem vir a se construir em torno de legados históricos ou de raízes culturais. As redes de movimentos sociais através de seus vários níveis de manifestação (submersas, latentes, virtuais ou estruturadas) podem, assim, respaldar-se em várias temporalidades: o passado (a tradição, a indignação), o presente (o protesto, a solidariedade, a proposta) e o futuro (o projeto, a utopia). Mas para além da noção de tempos sociais distintos, as redes podem ser também portadoras de historicidade, conforme tem se observado no Brasil no caso do sindicalismo rural, da pastoral da terra, dos movimentos dos sem-terra, contra as barragens, dos seringueiros, das mulheres agricultoras, dos quilombolas e outros.

Será, pois, no jogo dialético, entre tradição e raízes culturais revistas criticamente, por um lado, e opções políticas e utopias, por outro, que as redes de movimento podem construir seus projetos de transformação. A equação das raízes/opções, nos termos de Boaventura Santos (1997), pode ser frutífera nos movimentos sociais na medida em que “o passado deixar de ser a acumulação fatalista de catástrofe e for tão-só a antecipação da nossa indignação e do nosso inconformismo” (p. 116).
Todavia, as propostas pedagógicas de articulações entre tradições culturais, utopias e opções do presente devem ser constantemente reavaliadas, conforme nos adverte Queiroz (1999, p. 135), a partir de uma pesquisa realizada em assentamentos rurais no nordeste brasileiro:

“O MST desenvolve uma estratégia de reconstrução do passado... Entretanto, essa reconstrução encontra dificuldade de ser incorporada pelo conjunto de sua base, tendo em vista as particularidades reais das histórias de cada situação concreta, e também pela ausência de uma metodologia que procure reconstruir este passado em articulação com as histórias concretas de conflitos e lutas”.

Portanto a recuperação da história das lutas sociais deve ser referenciada e re-interpretada à luz das histórias de vida dos sujeitos concretos em cada assentamento ou setor do movimento. Um caso latino-americano bem sucedido dessa recuperação da história e sua articulação com um projeto de transformação ocorreram no Movimento Neo-Zapatista de Chiapas, que conseguiu resgatar valores culturais milenares associando-os a novos ideários modernos e mesmo pós-modernos e difundindo-os em tempo real. Criou-se, assim, pela primeira vez na história da humanidade, um potencial para uma dialógica entre culturas com raízes históricas diversificadas e, quiçá, um laboratório para a construção de relações interculturais de reconhecimento, respeito, solidariedade entre o tradicional e o moderno.
Estas questões temporais ampliam seu significado quando se tratam as redes também a partir de suas configuração espaciais, isto é, quando os legados históricos da tradição e os projetos ou utopias de transformação são lidos à luz de ações que conectam as escalas locais, com escalas regionais, nacionais e globais, conforme veremos a seguir.

Espaços e territórios

Do ponto de vista da dimensão espacial, na sociedade da informação podem ser observados dois tipos de redes sociais subjacentes aos movimentos: a) redes sociais primárias - interindividuais ou coletivas – as quais se caracterizam por serem presenciais, em espaços contíguos, criando territórios no sentido tradicional do termo, isto é, geograficamente delimitados; b) redes virtuais, resultantes do ciberativismo, as quais são intencionais, isto é, suas configurações se definem pelas adesões por uma causa ou por afinidades políticas, culturais ou ideológicas transcendendo as fronteiras espaciais das redes presenciais, e criando, portanto, territórios virtuais. Todavia, as últimas poderão vir a ter impacto sobre as redes presenciais e vice-versa, numa constante dialética entre o presencial e o virtual, entre o ativismo do cotidiano e o ciberativismo, entre o local e o mais global, vindo a auxiliar na formação de movimentos cidadãos transnacionais ou globalizados.
Podendo, assim, haver um deslocamento das fronteiras tradicionais comunitárias, locais, para o plano global, bem como se abrir a possibilidade dos atores globais re-visitarem constantemente os planos locais, na construção de movimentos globalizados, construídos em torno de impactos e visões alternativas, como vêem ocorrendo com os movimentos indígenas na América Latina, com o MST, com o Movimento de Atingidos pelas Barragens (MAB) e outros.
Desta forma, os conflitos, as contestações e as agendas sociais se globalizam e se particularizam simultaneamente, através de redes de informações, de redes inter-organizacionais (coletivos em rede)[3] e de redes de movimentos. Os problemas comunitários - o local - podem se projetar transnacionalmente, assim como, uma ética ou valores planetários – o global - pode se expressar simbolicamente ao nível das ações locais. Por exemplo, Chico Mendes é transformado num símbolo universal da resistência para a conservação das florestas, assim como a ética ecologista da ação ativa não-violenta vem sendo incorporada pelo movimento dos seringueiros na Amazônia (cf. Scherer-Warren, 2005b).

Enfim, para apreender a dimensão espacial das redes de movimento, a investigação deverá buscar as conectividades da rede, ou seja, verificar:

a - Como atores e organizações locais interagem com agentes coletivos atuantes nas escalas regionais, nacionais e transnacionais, e que novas territorialidades de ação se constroem neste processo? Nessa direção, Mançano Fernandes (2005) classifica os movimentos sociais no campo em “isolados” (mais efêmeros) e em “territorializados” (mais duradouros e com maior alcance em suas ações), sendo o último assim definido:

“o movimento territorializado ou socioterritorial está organizado e atua em diferentes lugares ao mesmo tempo, ação possibilitada por causa de sua forma de organização, que permite espacializar a luta para conquistar novas frações do território, multiplicando-se no processo de territorialização. (Ex.: MST, CPT e outros).

b - Quais são as organizações, atores e movimentos que são integrados ou excluídos através das redes, e quais as razões subjacentes aos processos de exclusão e inclusão social? Aqui é necessário lembrar que há hegemonias na organização dos territórios e que, portanto, é necessário estar atento nos processos pedagógicos, para que os atores menos visíveis não sejam marginalizados dentro do próprio movimento. Como bem observou Queiroz (op. cit.), em sua pesquisa sobre o MST na Paraíba, o qual segue a prática do “centralismo democrático, da submissão do indivíduo ao coletivo, da minoria à maioria, e o respeito à hierarquia entre os distintos níveis da organização” (p. 188), o desafio a ser enfrentado seria “certa capacidade de abertura e reconhecimento do outro, que tem sido sempre um processo delicado a ser enfrentado pelos movimentos sociais no Brasil” (p. 233).

c – Isso nos remete a última questão, sobre a coerência entre redes territoriais e redes de sociabilidade: quais são os graus de coesão grupal, tipos de solidariedade, de estratégias, mecanismos de negociação, representações simbólicas, construção de processos de subjetivação, interculturalismo, etc. em cada espacialidade do movimento? Trata-se, em última análise, de buscar entender as tensões entre formas de sociabilidade nas redes, as ambigüidades entre o mais local e o regional, o nacional e o global e as referências a tempos sociais diferenciados.

Formas de sociabilidade

No campo da sociabilidade, as redes de movimentos sociais podem ser observadas a partir de dois tipos de relacionamentos principais:
Primeiro, através dos vínculos diretos estabelecidos entre atores, em seus cotidianos, ao nível de suas comunidades, no espaço mais restrito das organizações coletivas específicas. Neste caso, trata-se de redes sociais personalizadas. Conforme colocam Loiola e Moura (1996, p. 55), nesta situação, “a rede constitui-se por meio de interações que visam à comunicação, à troca e à ajuda mútua e emerge a partir de interesses compartilhados e de situações vivenciadas em agrupamentos locais - a vizinhança, a família, o parentesco, o local de trabalho, a vida profissional, etc.”. Como exemplo, poderemos trazer as redes que se desenvolvem a partir da convivência e formas de sociabilidade que se desenvolvem no cotidiano dos acampamentos e assentamentos rurais.
Segundo, através de articulações políticas entre atores e organizações, em espaços definidos pela conflitualidade da ação coletiva, podendo, pois transcender os espaços de emergência da ação, onde os elos constroem-se em torno de identidades de caráter ideológico ou de identificações políticas ou culturais. Essa proposta de articulação em redes de movimentos parte do pressuposto ideológico de que as relações na rede serão mais horizontais e as práticas políticas pouco formalizadas ou institucionalizadas. Entretanto, as pesquisas demonstram que de fato os conflitos e tensões entre atores de uma mesma rede também se fazem presentes nesse tipo de organizações da sociedade civil.
Além disso, propõe-se que a pesquisa sobre as formas de sociabilidade nas redes deve incluir as seguintes categorias analíticas, dentre outras: reciprocidade, solidariedade, estratégia e cognição.
A noção de redes sociais a partir da categoria da reciprocidade tem sido especialmente útil aos estudos dirigidos às relações sociais do cotidiano local de comunidades camponesas. As redes de reciprocidade nas comunidades rurais são típicas das práticas de mutirão e de mútua ajuda, portanto, ocorrendo nas atividades produtivas e da reprodução familiar, como na saúde e nos cuidados com as pessoas, parentes, vizinhos e amigos. São úteis para essa análise as noções de Polanyi (1980) sobre uma economia que não se define apenas pelas motivações de mercado, mas também pelo contexto da vida social, onde as relações de “reciprocidade, redistribuição e troca”, pode ser constitutivas da reprodução social do grupo; e as de Mauss e seus seguidores (...), sobre a teoria da dádiva social, baseada nos princípios de “dar, receber e retribuir”, típica das trocas de favores, dias de trabalho e alimentos nas comunidades rurais.
A categoria da solidariedade tem sido útil para a análise de ações do voluntariado e das redes da economia solidária, como, por exemplo, foi empregada na pesquisa de Mance (2000). Segundo o autor, quando as redes de solidariedade constituem-se num movimento social, poderão vir a extrapolar os limites locais, regionais, atingindo escalas nacionais ou internacionais, como vem ocorrendo com as redes de economia solidária, as quais têm ampliado seus espaços de atuação na esfera pública. As redes de economia solidária se encontram em ascensão no campo latino-americano e brasileiro, partícipes ativas na criação do Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES) e da Secretaria Nacional de Economia Solidária (MTE/SENAES), criada em junho de 2003.
A dimensão estratégica das redes de ações coletivas tem sido empregada, sobretudo, para o entendimento das dinâmicas políticas dos movimentos sociais e das parcerias políticas ocorridas nas esferas públicas das mais locais às mais globais. A idéia de rede assume freqüentemente um caráter propositivo nos movimentos sociais, isto é, a rede como forma organizacional e estratégia de ação que permitiria aos movimentos sociais desenvolverem relações mais horizontalizadas, menos centralizadas e, portanto, mais democráticas. Portanto, desempenhariam um papel estratégico, como elemento organizativo, articulador, informativo e de empoderamento de coletivos e de movimentos sociais. As redes, como estratégia de mobilizações da sociedade civil, são formas de expressão simbólica, de visibilidade pública, e pedagógica para os sujeitos participantes como ocorre, por exemplo, nos Fóruns Sociais Mundiais e nas Grandes Marchas Nacionais, como a Marcha pela Reforma Agrária e outras. No Brasil têm-se como exemplos significativos: redes estratégicas de denúncias (as grandes marchas, Grito dos Excluídos, etc.); redes de estratégias de desobediência civil (acampamentos dos Sem-Terra e dos Sem-Teto); redes de combate à exclusão (Ação da Cidadania, Economia Solidária, etc.); redes de negociação na esfera pública (Conselhos Setoriais, Conferências Nacionais, dentre outras)[4].
As redes apresentam também uma dimensão cognitiva, que merece ser investigada, especialmente quando se busca entender o sentido das transformações sociais encaminhadas pelas redes de movimentos sociais. Os movimentos contemporâneos vêem construindo novas narrativas para a compreensão da complexidade na sociedade globalizada e da informação, das quais se podem destacar quatro, nesta nova situação sistêmica[5] :
a - desfundamentalização: confrontando-se com a noção das “grandes narrativas” do marxismo, que continha a idéia de existência de um sentido subjacente à história, segundo o qual há um rumo previsto para as lutas de transformação social, a narrativa das redes concebe os movimentos como coletivos múltiplos, construídos em torno de projetos alternativos (da reforma agrária, da ecologia, de direitos humanos, dentre outros); estes podem servir de pontes de comunicação e de difusão de novos códigos culturais desenvolvidos por estas redes, para outras redes na sociedade, opondo-se aos códigos das redes dominantes: nacionais, territoriais e/ou comunidades étnicas ou religiosas fundamentalistas (cf. Castells, 2000). As articulações políticas, entre sem-terras, quilombolas e indígenas, expressam, por um lado, a defesa da reforma agrária e, por outro, a legitimidade do direito de territórios a populações historicamente excluídas.
b – descentramento: as “grandes narrativas” privilegiavam um sujeito da transformação social (especialmente a classe). As novas narrativas das redes de movimentos sociais, com base no pensamento desconstrutivista, comportam elementos cognitivos que concebem o sujeito a partir de suas múltiplas identidades (além da classe - o gênero, a etnia, a cultura regional, etc.), e concebem a transformação a partir da articulação discursiva e da prática de variados atores coletivos (cf. Mouffe, 1996), como se observa nos Fóruns Sociais Mundiais e nas Grandes Marchas, como ocorreu nas Marchas Nacionais pela Reforma Agrária, Marcha Zumbi + 10 (do movimento negro), Marcha das Margaridas (do movimento de mulheres trabalhadoras rurais), dentre outras formas de mobilizações das redes de movimentos.
c - dos essencialismos rumo ao interculturalismo: se as “grandes narrativas” fortaleciam a noção de essencialismos coletivistas (dicotomização das classes), as pequenas narrativas dos novos movimentos sociais, das décadas de 1970-90 contribuíram, muitas vezes, para um essencialismo das diferenças (como em algumas abordagens do feminismo e ecologismo radicais). A questão que tem se colocado para os atores das redes de movimentos sociais na contemporaneidade é de como transcender as fragmentações dos novos movimentos sociais sem cair nas tentações de novos unitarismos totalitários. Não se trata, portanto, de anular as diferenças, mas através da dialógica realizar o reconhecimento do outro, elevando o outro da condição de objeto para a condição de sujeito e construindo a solidariedade, uma vez que esta só existe a partir das diferenças. Um exemplo pode ser buscado no texto da pauta de reivindicações da Marcha das Margaridas[6], definindo-se, então, como protagonistas das trabalhadoras rurais na Marcha Mundial de Mulheres: “A Marcha Mundial é uma ação do movimento feminista internacional de luta contra a pobreza e violência sexista. São mulheres negras, índias, brancas, jovens, adultas, da terceira idade e defensoras da liberdade de orientação sexual, de mais de 50 países de todos os continentes que realizam atividades de educação popular, mobilização e pressão sobre os órgãos de decisão política, combatendo as causas da injustiça e opressão, apresentando alternativas feministas que constroem uma nova sociedade”.
d - da separação entre teoria e prática ao engajamento dialógico na rede: neste nível, precisa-se examinar como, através de práticas emancipatórias ligadas em redes, tem-se ou não trabalhado a relação entre conhecimento-reconhecimento-práxis política. Trata-se também de se repensar as interações e articulações necessárias entre academia (locus privilegiado da produção intelectual), ONGs e entidades de apoio (agentes relevantes da mediação entre pensar e agir) e militância de base (sujeitos do ativismo e da participação cidadã), os quais deveriam participar de um processo dialógico de construção cognitiva na rede. Isso nos remete ao último ponto dessa exposição, de como pensar os processos de aprendizado no campo a partir de um trabalho colaborativo entre academia (especialmente a pesquisa social aplicada), entidades de mediação (ONGs, pastorais, escolas, etc.) e movimentos ou organizações de base.
O aprendizado contextualizado ou a escola do sujeito-ator[7]
Inicio esse último ponto com uma reflexão de Victor Valla (1998, p. 196): “trabalhar com os temas de movimentos sociais e educação popular exige muito estudo, tanto no nível teórico, quanto em nível de uma atenta observação daquilo que está sendo dito ou realizado por grupos populares”. É nessa direção que uma sociologia aplicada ao estudo dos movimentos sociais e da educação no campo poderia trazer contribuições para uma relação social construtiva entre o pesquisador, o mediador do aprendizado (outra palavra para professor) e o sujeito-ator do auto-aprendizado. Por isso, parece-me que tratar o aprendizado do sujeito-ator, a partir de sua inserção em cenários socialmente contextualizados, exige considerar as dimensões tratadas acima: suas histórias de vida, seus territórios de referência e suas formas de sociabilidade.
Conforme Castells (1997, p. 362) já observou, as redes de movimentos sociais fazem mais do que organizar atividades e socializar informações, sendo de fato “produtoras e distribuidoras de códigos culturais”. Por isso, a escola do sujeito-ator deve estar sintonizada com as forças culturais sinérgicas de cada realidade social, assim como os atores dos movimentos devem estar atentos ao que se lhes propõe como aprendizado (cf. Scherer-Warren, 2000). Para ilustrar trazemos um relato de uma escola do MST:

“Como a mística é algo que nos alimenta, que fortalece nossa organização, que nos dá esperança de viver com dignidade, resgatando os valores, entendemos que ela deve estar presente em nosso cotidiano... É neste sentido que a mística está presente na sala de aula e na escola, através da riqueza dos símbolos de nosso Movimento”. (MST, Coleção Fazendo Escola, 2000, p. 42).

Além disso, essa sinergia dos movimentos sociais alarga os projetos dos sujeitos, os processos de inclusão social tornam-se mais abrangentes, não se restringindo às conquistas sócio-econômicas apenas, mas incluindo demandas por direitos de participação política, à diversidade cultural, qualidade de vida e ambiental e ao conhecimento. A escola do sujeito-ator deve ser sensível a esses novos anseios de cidadania, como foi bem ilustrado por um representante do Fórum Nacional de Reforma Agrária e Justiça no Campo, referindo-se às práticas dos movimentos sociais no campo:

“Você vê que aumentaram várias frentes de inclusão. Porque você não só incluiu os camponeses no processo produtivo,... mas você está incluindo gente, vida, que é a inclusão social, que é a questão da cidadania. Você recuperou aquela pessoa, que não sabia nem ler, nem escrever. O cara hoje está na escola. Já pensando em ir para a faculdade. Olha como o sonho dele aumentou. O sonho dele antes era de ter a terra, agora o sonho dele é ter a faculdade. Você fez foi uma revolução cultural”. (Gilberto Portes de Oliveira)[8]

Para finalizar, poderemos relembrar com Roseli Caldart (2004), que “olhar para o movimento social como sujeito pedagógico significa retornar uma vez mais à reflexão sobre a educação como formação humana e suas relações com a dinâmica social em que se insere” (p. 317-8). O que, em outras palavras, significa discutir e entender a relação entre “os movimentos sociais e a cultura política, a democracia, a economia popular, a territorialização e espacialização dos movimentos, a história...” (Ibid, p. 322), aproximando metodologicamente produção do conhecimento e aprendizado e, assim, construindo sujeitos de seu próprio destino.

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* Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Movimentos Sociais (NPMS/UFSC), Professora Titular do Departamento de Sociologia e Ciência Política da UFSC, Florianópolis/SC, Brasil e Pesquisadora Sênior do CNPq. Email: ilse@manezinho.com.br
[1] Outros desdobramentos para essa parte do trabalho, vide em Scherer-Warren, 2005a e 2005b.
[2] Para uma conceituação desses tipos de rede, vide Scherer-Warren, 2005a.
[3] Sobre essa noção, vide Scherer-Warren, 2005a.
[4] Vide maiores desdobramentos em SCHERER-WARREN & ROSSIAUD, 2000; 2003 e no dossiê da Revista Política & Sociedade, n. 5, 2004.
[5] Já descritas em maiores detalhes em trabalho anterior, SCHERER-WARREN, 2002.
[6] Nome em homenagem à líder sindical Margarida Maria Alves, assassinada na cidade de Lagoa Grande/Paraíba, por latifundiários do Grupo da Várzea.
[7] Sobre as noções de sujeito e ator dos movimentos, vide Touraine, 1997 e 1994.
[8] Entrevista concedida ao Projeto AMFES, 2005, op. cit.

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