sábado, 17 de novembro de 2007

Tuberculose e Intervenção Social- texo apresentado nas IIIas. Jorndas

TUBERCULOSE E INTERVENÇÃO SOCIAL – Perspectivas e Desafios[1]

[2]Joaquim Paulo Silva


Uma Doença do Passado – Um Modelo Ultrapassado

1.
Quando Robert Koch isolou o bacilo, acabando em definitivo com todas as especulações acerca da identidade do Mycobacterium Tuberculosis pensou-se, com lógica, que a sua história terminaria aí (Baldaia, 2005: 115).
A Tísica, como era conhecida na Antiguidade, a Tuberculose, é conhecida pelo menos desde o final do século I d. C., quando Arete, físico grego, traçou um quadro clássico dos doentes com Tuberculose: febre baixa mas continua, perda progressiva de forças. aspecto final de um cadáver vivo com as faces rosadas e salientes, olhos brilhantes encerrados nas órbitas (Goff,1991:188).

É no entanto ao longo dos séculos XVIII e XIX com a Revolução Industrial que a Tuberculose assume importância crucial para os indivíduos e as sociedades, a deslocação imensa de populações para cidades que rapidamente ultrapassam em mais de mil % o número de habitantes, na sua maioria ex assalariados rurais, passando a assalariados urbanos vivendo nas condições habitacionais e higiénico – sanitárias mais abjectas, trabalhando 12 ou mais horas por dia em fábricas insalubres, possibilitando a disseminação e transmissão da doença como uma corrente facilitadora, minando o proletariado, tão necessário ao desenvolvimento burguês, pela corrupção dos costumes (nas palavras dos Liberais de então que culpavam os operários pela sua condição e pela doença), ou nos meios progressistas pele falta de assistência pública à mole humana indigente, fruto de uma sociedade que abandona os seus doentes e indigentes em nome do progresso. O Bk destruía bairros insalubres das brandes cidades, conduzindo à desorganização do espaço urbano, á guetização da pobreza, onde milhares de seres humanos viviam em zonas habitacionais sem água potável e saneamento básico, com enormes carências ao nível alimentar, não lhes sendo satisfeitas as necessidades básicas fundamentais (Goff).
Mas o Bk, atingia também, de forma igualitária alguns membros da burguesia, os mais debilitados, os génios desesperados ( como Chopin, Musset, Paganini, as irmãs Bronté, em Portugal, António Nobre, Sebastião da Gama, Cesário Verde, entre outros), membros de famílias reais.
Este caldo sócio – económico potenciou o rápido desenvolvimento da Tuberculose, denominada a “Peste Branca”, nas zonas urbanas em processo de industrialização, como foi o caso da cidade do Porto, entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX.

Foram os Higienistas que influenciaram acção política e os seus responsáveis, a tomarem nas mãos a acção simultânea de criação de dispensários e sanatórios, de visitantes sociais (as visitadoras: enfermeiras), da necessidade de enquadrar cada família, desses bairros infecto, num foco possível da infecção e portanto da necessidade de intervenção, avaliação, aconselhando, empregando os seus membros, higienizando o grupo.

O Doutor Hazemann foi um dos primeiros teóricos do serviço social, no qual via uma organização científica encarregada de quantificar a pobreza urbana para repartir objectivamente os auxílios. Assim como o urbanista e o higienista tornam sã uma cidade procurando as causas de insalubridade, dotando-a de um plano de cidade, assim os trabalhadores sociais deverão procurar nas famílias as causas do mau-estar económico e fisiológico e dotá-las de um plano de vida (Goff).

A partir da Tuberculose, controlar a família, controlar a raça contra a degenerescência. Uma sociedade higienista, uma medicina elevada a política global, nas palavras de Saint Simon em 1813.: “É necessário associar todas as questões políticas a questões de higiene” ( Goff).

No entanto, todo o debate e torno da questão social e da relação com as condições sanitárias e ambientais das populações nas grandes cidades europeias e norte americanas no início do século, conduziram dos anos 20 aos anos 50 do XX século a uma melhoria global das condições sociais e habitacionais, de onde ressalta a intervenção estatal com a criação do Estado Social e dos primeiros Serviços Nacionais de Saúde. Ainda antes da descoberta dos antibióticos, a Tuberculose começa a regredir por acção da intervenção coordenada estatal. Em França, por exemplo, em 1920 o número de mortos pela Tuberculose era de 85 000 (ano) e em 1945, embora elevado, era de cerca de 42 000 (Goff, Idem:187)
Desde que Waksman, em 1944, descobriu a estreptomicina, a quimioterapia não mais parou de registar sucessos decisivos contra o bacilo da Tuberculose, que até aos anos 80 foi-se reduzindo de tal modo que das doenças registadas na União Europeia, ficava no fim da tabela (23º sensivelmente) ao nível da mortalidade.

A visão estritamente biológica da doença, com a consagração dos anti-bacilares (os 4 grande de base: estreptomicina, rifampicina, isoniazida e pirazinamida), com grande sucesso terapêutico em boa parte do mundo, fez cair a incidência e deu a ideia de controlo e quiçá possível erradicação da doença.













Uma Doença do Presente – Um Paradigma de Intervenção Total

2.
No início da década de 80 do século XX, registou-se uma alteração significativa na curva descendente de novos casos de Tuberculose a nível mundial (Dimas, 2005: 118).
A terceira vaga da industrialização, pelo desenvolvimento de uma sociedade tecnológica, globalizada, mercantilista, com consequências na precariedade do emprego e das condições de vivência psicossociais, geraram o aparecimento de uma nova pobreza, de novos grupos de pobres (mantendo-se alguma da pobreza dita tradicional), da exclusão social, em simultâneo com o aparecimento do Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) e da diversificação das novas dependências que criaram grupos de risco mais vastos e alargados.
São vários os estudos e especialistas que chamam a atenção, desde os anos 90 do Século passado, para a intima relação entre a população sem-abrigo, desempregada de longa duração, do HIV, e de Indivíduos com comportamentos aditivos, e a proliferação da tuberculose nestes grupos.

Em 1990 um terço da população mundial continuava afectada pelo Bacilo de Koch, surgindo anualmente 8 milhões de novos casos e 3 milhões de mortes.
Os dados de 2004 apontam para um panorama ainda mais complexo em determinadas zonas do mundo:

- No mundo: surgem por ano mais de cinco milhões de pessoas infectadas e morrem 1,7 milhões.
- O Sudoeste Asiático é um dos locais no mundo particularmente afectados - 1,2 milhões de casos e 500 mil mortos.
- Em Africa, a situação é extremamente delicada, pela correlação Tuberculose/HIV, ocorrendo uma incidência de 272 casos por 100 mil habitantes, em contraste com os 27 por 100 mil da União Europeia (Dados de 2004 da O.M.S.).

Em Portugal, em 2006 (dados SVIG/TB), foram notificados 3092 casos novos de Tuberculose (TB), correspondendo a uma incidência de 29,4 por 100 mil habitantes.
A distribuição geográfica é heterógenea, destacando-se as áreas de Lisboa (com 38,9 por 100 mil) e do Porto (com 45,4 por 100 mil) estas zonas bem acima da média europeia e mesmo muito similares aos piores países do Leste.
Portugal, apesar da descida de cerca de 10% na última década( muito aquém do que vinha descendo em décadas anteriores), permanece a mais elevada dos países da União Europeia antes do alargamento de 2004. Mesmo após o alargamento vemos países como a Hungria, República Checa e Eslováquia e Polónia com melhores resultados que os nossos, ao nível da incidência.

No entanto a tendência global para um certo recrudescimento da doença em todo o mundo, mesmo nos países mais desenvolvidos, bem como a verdadeira pandemia na Africa, Ásia e América do Sul, tornou uma urgência a Tuberculose e a intervenção na mesma, com o aparecimento de novos programas como o Stop TB, a nomeação de Jorge Sampaio como Enviado Especial das Nações Unidas para a Luta Contra a Tuberculose, denunciando a emergência da Tuberculose.

Causas para esta situação:

- Sensação no início dos anos 70 que a Tuberculose estaria controlada, ao nível clínico, e mais uma ou duas décadas e seria erradicada, levou ao desarmar dos instrumentos públicos de acção Estatal organizada de prevenção, diagnóstico e tratamento, desactivando-se uma rede de dispensários e sanatórios (exactamente o que aconteceu em Portugal).

- Alteração da composição social com o aparecimento de uma Nova Exclusão, típica das Megalópoles mundiais, em resultado da alteração económica e tecnológica, imposta pela globalização dos mercados financeiros, informacionais e das novas tecnologias, aumentando o desemprego, o isolamento, os grupos em situação de exclusão, conduzindo o Estado Providência ao dilema da sua superação, ou mudança.

Bruto da Costa (2005) define com clareza a tipologia das novas “exclusões sociais”:

n - Os idosos, doentes e acamados, deficientes, cuja condição de isolamento provocada por uma sociedade individualista potencia a quebra dos laços sociais e aumenta a falta de auto-suficiência e autonomia individual, conduzindo a limitações sócio-económicas graves;

n - A toxicodependência, o alcoolismo, a prostituição. Comportamentos que se interligam com a pobreza clássica, mas que ultrapassam na medida em que associam o abandono familiar, a desvinculação social, o desemprego, a falta de cuidados de saúde, a inércia de cidadania, engrossando a categoria, também nova e a mais baixa da escala de exclusão, os sem abrigo.

n - O desemprego de longa duração fruto das mutações rápidas do mercado de trabalho e da tecnologização dos serviços, que impelem diversos tipos populacionais da situação de inseridos, para a desintegração social, criando pobreza e exclusão social;

n - Os Sem – Abrigo. Uma das formas mais extremas de exclusão social, relacionada com Urbanização das sociedades, a indiferença perante a tragédia pessoal e a incapacidade dos sistemas de segurança social estatais oferecem respostas eficazes. É uma população heterogénea, com histórias de vida diversas, que de queda em queda foram perdendo não só a residência, mas a vivência social, construindo uma história de rua difícil de alterar.

- A resistência do BK aos “velhinhos” antibióticos”, produziu novas estirpes resistentes, multiresistentes e ultra resistentes (estas praticamente sem cura) ao tratamento tradicional. Sendo pois urgente apoio á investigação de novos fármacos mais potentes, inovadores e articulando com o HIV. A própria vacina da BCG, bem conhecida, não previne a transmissão de modo global, principalmente nos adultos.
Esta situação deve-se ao facto das indústrias farmacêuticas se situarem nos países mais ricos, cuja incidência tem sido baixa, ao contrário dos mais pobres, como diz Veronique Vincent (OMS, 2007), “ a investigação neste campo tenha sido negligenciada durante muitos anos(…)” porque “a Tuberculose tem elevadas incidências apenas nos países mais pobres”.

- Ainda, mas não menor, a causa ambiental está topo da ordem, com as mudanças bruscas climáticas que vão alterando as condições globais de vivência urbana, alterando os rirmos normais de deslocalização humana, pela destruição, pela escassez de recursos, pela busca de melhor qualidade de vida noutras paragens (emigrações e migrações), transportando o Mycobacterium e as suas novas virulências para zonas do globo mais diversas, pela própria facilidade de transporte.


A visão fracturante sobre a natureza, o homem e o cosmos, herdada da modernidade, visões que excluem parte do conhecimento humano na organização de programas e projectos, locais e globais, sobre fenómenos de características totais, como é o caso da Tuberculose, perde hoje terreno, se queremos encarar esta luta, não como específica de uma visão clínica-social, ou bio-psico-social, mas mais lata, exactamente tão lata quanto a multitude de factores que aqui intervêm.

Ora a Tuberculose poder-se-á considerar como o paradigma da relação entre doença e condições sócio – económicas precárias, bem documentada desde o século XIX. Ou seja, sem menosprezo para outra doença, um fenómeno social total que implica um novo paradigma de abordagem.
Um paradigma simultaneamente personalista, pois deve assentar num Projecto do Ser, enquanto Sujeito de Direitos e pessoa na sua dignidade, mas também, enquanto grupo humano, perspectivado na sua diversidade e unidade em simultâneo.

Um paradigma que deve assentar numa relação em rede: entre as questões biofísicas (dos avanços químicos e profiláticos), em intima relação com as opções macro das políticas sociais e de saúde na reconstrução de um sistema tecno-social de diagnóstico/tratamento/inserção/empowerment e envolvimento de todos os agentes activos (profissionais, voluntários, familiares, públicos e privados), reconstruindo as pontes entre os deserdados das franjas, as ONG no terreno e o sistema público, em formas móveis de interacção transdisciplinar, medindo a qualidade eco – social e antropo – espiritual das respostas, face a tamanhas necessidades.
Um sistema simultaneamente local e global. Local, perspectivado em função das dinâmicas de expansão da Tuberculose, e das razões bio-psico-sócio-económicas e culturais desses resultados, aonde a prevalência é dramática, como nos bairros sociais das grandes cidades, ou em zonas degradas, ou ainda em grupos de risco como emigrantes, os toxicodependentes, os isolados, os portadores de HIV, e global, tendo em conta, que num mundo globalizado, nenhum território é impermeável à pressão estrutural da Economia financeira mundial, que determina, muitas vezes, as apostas políticas locais e defrauda as expectativas dos agentes e das populações.
















Alguns Desafios


3.
- Articular políticas Públicas Nacionais e Internacionais.

- Articular Políticas Públicas com as Organizações Privadas no Terreno.

- Investir na Reorganização de um sistema Público de Luta Contra a Tuberculose.

- Flexibilizar os Centros de Diagnóstico e Tratamento em função das Novas Populações atingidas pela Tuberculose, os Novos Excluídos, ao nível da sua Organização, Horários e Disponibilidade de articulação com agentes no Terreno.

- Perceber que a Intervenção na Tuberculose é Multidimensional e Transdisciplinar, e portanto qualquer intervenção é simultaneamente clínica – política – social – psicológica – cultural – ecológica. E que só deste modo tornaremos o Programa Stop Tb, até 2015, uma realidade e não um pesadelo.













Bibliografia:



Baldaia, João Dimas (2005), “ Tuberculose: Um Novo Desafio”, Revista Investigação e Debate – Serviço social, nº 15, Porto, pp. 115-120.

Costa, Alfredo Bruto (2005), Exclusões Sociais, Cadernos Democráticos, Nº2, Gradiva, Lisboa, pp.9-1.


Goff, Jacques Le (1991),” As doenças Têm História”, Terramar, Lisboa, pp. 187 – 201.


OMS (2007), in Conferência: Uma Solução Conjunta para as Doenças Tropicais: A Resposta Luso-Americana”, Lisboa.


Almeida, A. Ramalho(S/d), A Tuberculose – Doenças do Passado, Presente e do Futuro, Bial, Porto.



Santos, José Álvaro et al. (2004), Por Um Novo Humanismo Para o Serviço Social, Cadernos da AIDSS, Porto, pp. 75-95.



Silva, Joaquim Paulo (2005), Caracterização Sócio-Económica do Utente de Serviço Social, Centro Diagnóstico Pneumológico do Porto, Porto.



Sampaio, Jorge (2007), Entrevista, Revista Noticias Sábado, 96, Porto, pp.12-24.



Valente, Maria de Jesus (S/d), “ Tuberculose: Doença da Pobreza e do Subdesenvolvimento”, In A Tuberculose na Viragem do Milénio, Lidel, Lisboa, Cap. 43, pp. 565-575.
[1] Texto apresentado nas IIIas. Jornadas de Serviço Social, organizadas pela AIDSS nos dias 15 e 16 de Novembro de 2007, e realizadas na Universidade Católica Portuguesa, Porto.
[2] Licenciado em Serviço social, Mestre em Relações Inter culturais, Assistente Social no Centro Diagnóstico Pneumológico do Porto e Director da Revista Investigação e Debate – Serviço Social.

sábado, 27 de outubro de 2007

APAV
Apoio à Vítima
O PAPEL DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE APOIO À VÍTIMA NO CONTEXTO DOS MAUS TRATOS1


A publicar na revista nº 16 da AIDSS

Antes de dar início à comunicação que preparei para apresentar neste Seminário, gostaria de agradecer, em meu nome e em nome da APAV, o convite que a Associação de Investigação e Debate em Serviço Social fés para abordar algumas questões sobre maus tratos. No entanto, entendo que antes de abordar esta temática se faça referência a alguns aspectos que considero pertinentes, nomeadamente:
l- Caracterização da APAV « domínio de intervenção dos nossos serviços:
A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) é uma instituição particular de
solidariedade social, que se fundou em 25 de Junho de 1990, localizando-se a sua sede
em Lisboa Quanto ao Gabinete de Apoio à Vítima do Porto, conta já com 12 anos de
existência,
A. APAV é uma organização sem fins lucrativos e de voluntariado, que apoia de forma
individualizada, qualificada e humanizada, vitimas de crimes, através da prestação de
serviços gratuitos e confidenciais.
Quanto ao tipo de apoio prestado, é feito a vítimas de crime e costuma ser efectuado a
um, dois, ou a três níveis (dependendo da problemática que nos é apresentada e da
avaliação que efectuamos), podendo então ser.
Apoio Jurídico: prestamos esclarecimentos acerca dos direitos das vitimas, bem como as informamos acerca das etapas dos processos judiciais, designadamente no que deve ser feito para denunciar as situações de maus tratos e dos trâmites processuais implicados. Quando abordamos as questões referentes ao divórcio, também esclarecemos as pessoas acerca deste tipo de processos. Também é costume auxiliarmos as vítimas na elaboração de requerimentos que não exijam a constituição de advogado, o que pode ser posto cm prática quando se trata de situações em que elas foram alvo de um crime violento e pretendem ser indemnizadas por isso;
Apoio Social: geralmente implica um trabalho em rede, juntamente com outras instituições, no sentido de garantir alguns apoios às vítimas, que podem ir do apoio alimentar, vestuário à ajuda de mudança de casa, ou integração num centro de acolhimento temporário, entre outros. Tudo depende da situação que avaliamos e das necessidades das vítimas (e descendentes, quando os há),
Apoio Psicológico:
trata-se de um apoio em que se tenta validar as competências das pessoas» Onde se procura que as elas se restabeleçam emocionalmente. Seguidamente, e sempre que se justifica, delimitamos um plano de segurança pessoal. Por vezes ajudamos as pessoas a redefinir o seu projecto de vida.
2- Definição do conceito de Violência Doméstica:
Tendo em consideração que a maior pane das pessoas que solicitam os nossos serviços
são vítimas de violência doméstica, vou passar a definir este conceito; a violência
doméstica refere-se a qualquer acto, conduta ou omissão exercida directa ou
indirectamente e com alguma intensidade de modo a provocar sofrimentos psicológicos,
físicos, sexuais a qualquer pessoa que habite
no mesmo agregado familiar ou, mesmo não co-habitando, tenha alguma relação de
proximidade afectiva.
Assim sendo, podemos dizer que a violência doméstica se refere à violência conjugai
(entre casais heterossexuais, ou casais homossexuais), à violência contra as crianças e
jovens, ou à violência contra os idosos.
As estatísticas mais recentes da APAV, reportam-se ao primeiro semestre de 2004, e
indicam-nos que a maioria das vítimas pertence à faixa etária dos 25 aos 45 anos, é do
sexo feminino e é casada.

3- Enquadramento jurídico e crimes do âmbito da violência doméstica:
Um outro aspecto que considero de particular relevância é o facto de referir que a
violência doméstica não é crime, uma vez que não vem tipificada no Código Penaí
Português, nem em legislação avulsa. No entanto, o Artigo 152 fala-nos no crime de
maus tratos, que era considerado um crime semi público em 1995 e desde 2000 que é
considerado um crime público.
Os crimes que costumam estar associados a este fenómeno costumam ser os de
ameaças, coacção, violação, difamação, injúrias, ofensas à integridade física, entre
outros.
A nossa experiência tem-nos revelado que esta situação retraia quase sempre a violência
repetida de um dos companheiros sobre o outro, e do homem sobre a mulher,
Geralmente estes episódios caracterizam-se pela existência de rnais do que uma das
seguintes formas de violência: verbal, emocional, psicológica, física, sexual
De salientar que estas situações se tornam mais graves quando nos reportamos a pessoas
com filhos, onde a violência doméstica também pode ser exercida sobre eles, ainda que
não venham a constituir um alvo directo desta violência, acabando assim por ser vítimas
indirectas de violência doméstica Isto aplica-se sobretudo às crianças e jovens que
assistem aos episódios de violência entre os pais, ou responsáveis educativos.
4- Caracterização do "Ciclo da Violência** descrito por Walker:
Esta problemática foi estudada por Walker (1994), que identificou um processo associado à dinâmica da violência doméstica, o qual foi denominado por "Ciclo da Violência" e que se caracteriza pela existência de três fases:

l- Fase do aumento da tensão: costuma ser a fase mais longa e inclui vários episódios de tensão. Geralmente caracteriza-se pelo recurso à difamação, injúria, ameaças, ou outros tipos de maus tratos ao nível psicológico,


2- Fase do ataque violento: num período inicial existe uma resistência à agressividade, mas a tendência é para a agressividade se vir a manifestar, chegando mesmo a estar na origem de uma escalada de violência, em vez de esta cessar. Trata-se de uma fase em que para além de se verificarem os maus tratos mencionados na fase anterior, também existirem outras formas de mau trato como as agressões físicas, abusos sexuais, violações, etc.

3- Período de reconciliação ou lua de mel: verifica-se após as agressões,
quando surge o pedido de desculpas por parte de quem agride.
Quanto mais longo for este processo, maior é a tendência da vítima sentir que perdeu o controlo sobre si e a sua vida.

4- Normalmente as vitimas não conseguem prever quando é que estes ciclos se vão repetir, mesmo quando eles se começam a tornar cada vez mais repetitivos.

5- Estratégias de controlo exercidas por parte de quem agride:
Normalmente, é costume o agressor, desenvolver algumas estratégias para dominar as vítimas, recorrendo frequentemente ao isolamento da sua rede de suporte social {família, amigos, colegas de trabalho, etc); tentam (e muitas vezes conseguem) intimidá-las, procuram exercer um controlo acentuado ao nível económico, privam-nas de algumas necessidades básicas (como o sono, alimentação, etc)o que as deixa num estado de grande debilidade física e emocional, tomando-as consequentemente mais fragilizadas e vulneráveis.

6- Principais alterares comportamentais que as vítimas costumam manifestar:
É devido a estas situações que as vítimas de violência doméstica tendem a apresentar algumas alterações comportamentais, de onde destaco:
Alterações dos padrões de sono e apetite,
Danos físicos, corporais e cerebrais, alguns deles irreversíveis (ex: problemas
neurológicos),


Distúrbios cognitivos e de memória, como as dificuldades de concentração,
confusão, flashbacks, crenças disfuncionais sobre si (ex; vítimas que julgam que
estão a enlouquecer);
Comportamentos depressivos, por vezes com tentativas de suicídio, ou mesmo
com o suicídio consumado,
Isolamento social como consequência dos sentimentos de vergonha, falta de
confiança, auto-culpabilização, desvalorização pessoal, etc,
Baixa auto-estima;
Distúrbios de ansiedade, hipervigilância, ataques de pânico (ex: dormem
vestidas para estarem prontas para sair),
Por fim, mas não menos importante, a vulnerabilidade, a dependência
emocional, a passividade e o desânimo aprendido.

7- Que atitude a tomar perante este fenómeno:
Tendo em consideração todas as questões referidas nos pontos anteriores, há que referir algumas questões de carácter mais prático. Para começar, há que valorizar desde logo o pedido de ajuda que nos é dirigido. Esse pedido pode surgir por intermédio de familiares,, amigos, colegas, vizinhos das vítimas, ou peias próprias vítimas. A forma como nos abordam pode ser feita através de um contacto telefónico, pessoal, via internet, fax, carta, etc.
Seja qual for o modo corno o pedido de ajuda é feito, devemos adoptar desde logo uma atitude empática, bem como devemos estar cientes que estamos a lidar com seres humanos que se encontram muitas vezes em sofrimento. Assim, antes de adoptarmos a
nossa postura de Juristas, Assistentes Sociais ou Psicólogos e de começarmos a intervir a qualquer um destes níveis, devemos ter sempre presente que somos Técnicos de Apoio à Vítima e devemos tratar as pessoas que nos procuram colocando de lado juízos de valor, tabus, crenças religiosas, etc.



Geralmente a primeira abordagem que fazemos serve para as vítimas nos conhecerem e para termos oportunidade de conhecer as suas histórias de vida, sendo que o apoio prestado costuma por ser apenas emocional. Só depois das vitimas estarem num estado emocional mais estacionário é que começamos a delimitar alguns objectivos. A relação estabelecida com as vitimas deve ser facilitadora e potenciadora da partilha de informações Só assim é que conseguimos avaliar as suas necessidades e comecemos a delinear em conjunto com elas as estratégias a colocar em prática para as ajudar na resolução dos seu$ problemas
Tal como havia referido no primeiro ponto desta comunicação, muito do trabalho que desenvolvemos junto das vítimas é feito em pareceria com outros organismos, Por isso é que se toma cada vez mais importante sensibilizar os profissionais que estão envolvidos neste processo e que se encontram a desempenhar as suas funções nos mais diversos serviços, desde a Saúde ao Ensino, aos Tribunais, etc, a saber lidar com estas situações de modo a ajudar as vítimas a ultrapassar este momento difícil das suas vidas. O mesmo se aplica à comunidade em geral, visto que se trata de um dever cívico, o de ajudar as vítimas a denunciar estas situações, até porque não são poucas as vezes que constatamos que podemos fingir que não vemos, mas de certeza que esta atitude pode ser mudada "quando o problema nos toca", isto é, quando nos confrontamos com aigum familiar ou amigo vítima de violência doméstica. Nestes casos é mais difícil ficarmos indiferentes...
O mínimo que podemos fazer é denunciar estas situações a quem de direito: PSP,PJ, GNR, Serviços do Ministério Público, Instituto de Medicina Legai, ou então solicitar o apoio da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, Projecto de Apoio à Família e à Criança, Comissões de Protecção de Crianças e Jovens e Perigo, Instituto de Apoio à Criança, Comissão para Igualdade e para os Direitos das Mulheres, Linha Nacional de Emergência Social, Emergência infantil, etc.



1 Comunicação apresentada por Cátia Rodrigues,, Psicóloga, Técnica de Apoio à Vítima a exercer funções no Gabinete de Apoio à Vítima do Porto, no âmbito do XII Seminário, promovido pela Associação de investigação e Debate



APAV
Apoio à Vítima
Bibliografia consultada:
APAV (1998). Manual dos serviços de apoio à vítima de crime na APAV. Lisboa: APAV
APAV (2004). Estatísticas do primeiro semestre de 2004, cm: http://www.apav.pt
Walker, L. (1994). Abused Women and survivor therapy: A practical guide for psychotherapist Washington: American Psychological Association.

A CONSTRUÇÃO DEONTOLÓGICA DO SERVIÇO SOCIAL

VII
A CONSTRUÇÃO DEONTOLÓGICA DO SERVIÇO SOCIAL

de Alvaro Santos- excerto de livro a publicar

Parece-nos que deixamos claro que, em nosso entender, a Ética não é um mero código normativo legal que estipula as normas pelas quais uma profissão se rege. Antes de mais, Ética é o instrumento pelo qual a profissão reflecte sobre o mundo onde está inserida. A complexidade da vida humana obriga o Serviço Social a questionar-se permanentemente sobre o seu papel na sociedade. A Ética torna-se, assim, o “pensar fundamental” da profissão e a forma como esta dialoga com o mundo.
Por outro lado, através dela, afirma a sua responsabilidade definindo um conjunto de valores que norteiam a sua actividade com vista a um objectivo bem determinado: a Dignidade Humana.
Estes valores e objectivo conduzem à assunção de um projecto profissional que consubstancia a reconstrução do sujeito.
Por reconstrução do sujeito entendemos a necessidade de analisar o sujeito em todas as suas dimensões e contribuir para a sua realização pessoal, potenciando e possibilitando as suas capacidades, para que ele próprio encontre o seu rumo.
A definição dos valores corresponde a esta dimensão. Quando falámos de Liberdade, Responsabilidade, Autonomia e Autenticidade, não estamos só a falar das obrigações do técnico. Falámos também das obrigações que qualquer um terá que considerar nos seus actos.
Quando falámos de Participação, Solidariedade e Democracia referimo-nos a valores que abrem espaços, não só necessário ao exercício profissional, mas também necessários ao desenvolvimento da individualidade.
Ao analisarmos a questão por este prisma, a Ética assume uma outra faceta, que é o seu carácter metodológico. Ao definir os parâmetros, através dos valores, da intervenção profissional, a Ética passa a ter um papel decisivo na organização metodológica da intervenção, além de a fundamentar. Na procura de respostas, a questão de saber o que fazer numa situação concreta, analisa-se que valores estão postos em causa e quais devem nortear a acção naquele caso concreto. A reflexão nestes parâmetros conduz à organização de uma metodologia de intervenção na qual se define objectivos, métodos e meios nos moldes mais adequados quer aos valores éticos quer ao contexto da acção, como aliás, tentámos demonstrar no capitulo III.
Ética é a essência do Serviço Social. Poderia dizer-se que é uma frase feita ou que em muitas actividades profissionais a Ética assume o mesmo peso. A isto respondemos que, por norma, se tem associado a Ética a um conjunto de regras que não devem ser violadas na actividade profissional. Mas no Serviço Social o que está em causa é o diálogo com o mundo, no sentido em que, mais do que qualquer outra profissão, a necessidade da adaptação á realidade onde está inserido e ter consciência da Ecologia da Acção são fulcrais nesta posição e que obriga a uma maior consciência ética.
Se a matéria-prima do Serviço Social parte e dirige-se ao Ser Humano, não num sentido mecanicista, mas sim num processo de valorização dos recursos endógenos, então, não é possível actuar sem balizarmos a actividade profissional dentro de um quadro ético não só para que o profissional tenha consciência do seu papel, mas também para que quem recorre a ele perceba os objectivos do seu trabalho.
Mas os valores a que uma profissão adere traduzem a sua visão e, como tal, a aderência aos valores também não deixa de ser também uma atitude política, no sentido mais nobre do termo.
Qual então o objecto do Serviço Social? Se assumimos a complexidade humana como esteio da sua intervenção então o objecto do Serviço Social é a vivência humana, porque possibilita a abrangência de todas as dimensões humanas e porque é da vivência humana que resulta os desequilíbrios e os conflitos que solicitam a intervenção do Serviço Social. Só conhecendo os modos de vida e a organização se pode encontrar as causas e as soluções aos problemas que se colocam. Reduzir o objecto ao cliente/utente é redundante e impede uma visão lata da actividade humana.
Se o objecto não é o utente/cliente, então o acto do Serviço Social também não se pode resumir ao diagnóstico, nem mesmo encarando-o num conceito mais alargado que envolva não só o diagnóstico propriamente dito, mas também a intervenção subsequente. Aliás, a definição de qualquer acto do Serviço Social será sempre redutora e temporal. A complexidade da realidade humana demonstrará sempre isso em devido tempo.
Daí que a proposta deontológica aqui expressa propunha não a definição de um acto do Serviço Social, mas sim da missão do Serviço Social, aliás como está expresso no Código de ética da N.A.S.W. (National Association of Social Workers, EUA) e subentendido na Declaração de Princípios subscrita pela Federação Internacional de Assistentes Sociais e pela Associação Internacional de Escolas de Serviço Social.
Definir qual a missão do Serviço Social é muito mais adequado do que resumir o papel do Serviço Social a um acto. Falar de missão em Serviço Social poderá ser considerado uma ideia demasiado vaga, face á prática verificada nos outros códigos, mas já foi expresso neste texto que consideramos a ética como uma reflexão sobre a realidade e, como tal, não falámos em regras mas em valores. Aliás esta ideia está presente no já citado Código de Ética da F.I.A.S., no qual expressa a ideia que o objectivo do mesmo era enquadramento das questões éticas num âmbito mais vasto, concedendo a liberdade a todos os Assistentes Sociais, mediante a realidade com cada um se depara.
Isto não significa que a profissão fique num limbo, á mercê do gosto de cada um. A abordagem da vivência humana reconhecendo que toda a forma de conhecimento sobre ela só poderá ser válida se considerar o complexo bio-antropológico, não é só um posicionamento ético conforme já demonstramos, mas também uma postura científica recusando o emparcelamento e o isolamento do conhecimento cientifico, evitando deste modo, como também já se referiu, uma ciência sem responsabilidade.